sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cinema e futebol nos tempos do franquismo

Há algumas postagens, escrevi acerca da relação existente entre a música, o futebol e a rivalidade que permeia as cidades britânicas de Liverpool e Manchester. Dessa vez, o território escolhido foi a Espanha, sobretudo as cidades de Madrid e Barcelona. Os parâmetros? Futebol e a sétima arte, o cinema.
Uma grande expressão dessa rivalidade se deu durante o regime do ditador Francisco Franco, chefe de Estado espanhol que perdurou no poder por quase três décadas (1936-75). O cinema e, sobretudo, o futebol foram impactantes para a implantação de modelos e referências sociais na Espanha de Franco. Durante a década de 1950 o esporte se consolidava e seus maiores nomes passaram a ser alçados ao status de heróis nacionais.
À época o Real Madrid FC contava em seu elenco com o argentino Di Stéfano, falecido ainda esse ano e considerado pelo próprio clube o maior que já pisou nos gramados madrilenos. O maior rival catalão não saía atrás e trazia na figura de Kubala, seu ídolo maior. Kubala, menos conhecido que Di Stéfano, foi considerado, em eleição dos torcedores da equipe catalã, o melhor jogador dos primeiros cem anos de clube. Fato curioso é que os dois também marcam história ao se tornarem os únicos a defenderem três seleções nacionais, prática hoje vedada.
Futebol e cinema sempre foram grandes competidores dentro do mercado de entretenimento e os dois conjuntamente eram essenciais para recuperação espanhola após um longo pós-guerra e, tão logo, se uniram como ferramenta de projeção do regime. As atuações de estrelas do esporte em filmes já se faziam sentir antes mesmo da Guerra Civil espanhola, como em Por fin se casa Zamora! (1927).  Durante o regime a relação começa a ser marcada em 1942 com Campeones, seguido de muitos outros, como Once pares de botas (1954), Los económicamente débiles (1960) e Los de la furia (1962).
Mas os dois filmes que marcaram o ciclo foram Los ases buscan la paz (1954) e Saeta rubia (1956), protagonizados pelos grande nomes locais. Apesar dos filmes não se apresentarem como primores técnicos, são representações de ferramentas copiadas em todo o mundo para difundir as massas num modelo de realização masculina, promotora do regime. Os maiores ídolos espanhóis à época eram, sem dúvidas, as estrelas do futebol e os mesmos reuniam um conjunto de valores humanos que permitiram que se convertessem em valores para a sociedade, dentro e fora dos gramados.
O franquismo, tal qual o período varguista e a ditadura militar no Brasil, utilizou o futebol como instrumento de manutenção do governo e tratou de utilizá-lo junto ao cinema em como fator fundamental para formação de identidades e modelos sociais, conseguindo aglutinar diversas tendências sociais e políticas conservadoras. Ao mesmo passo, o impacto massivo do cinema permitiu fazer do mesmo uma ferramenta ideológica decisiva, controlado desde o início e utilizado como meio de propaganda e de educação de massa durante o regime.
Os filmes produzidos até então, tais quais La leona de Castilla e Alba de América (1951), traziam grande carga histórica e literária, marcada por forte influência neorrealista, o que muitas vezes confrontavam os interesses nacionais. Outros gêneros tratados eram as comédias, o cinema musical folclórico, atrelados à tradição da Anadalucía, e os espetáculos com a presença de estrelas infantis. Apesar de a década de 50 marcar o principal momento da sétima arte espanhola até então, com a forte presença do regime, vários gêneros e filmes passam a ser censurados, marcando a abertura de um caminho de cinema clandestino, tomado por denúncias de miséria e desigualdades sociais.
O projeto desportivo espanhol, após a tomada do poder da Falange, estava em decadência, e restava aos aficionados o depósito de confiança nas estrelas individuais. O autor Santander Fernandez, em sua obra El Futbol durante la Guerra civil y el Franquismo, afirma que nessa época, em um país de espectadores, o futebol se converteu em um fenômeno social. O governo passa a utilizar-se desse panorama de mobilização política principalmente após a chegada dos estrangeiros: Puskas, Di Stéfano e Kubala. Ao mesmo tempo, o futebol se torna um pilar da cultura de evasão do franquismo.
Em Los ases buscan la paz, o filme dirigido por José Ruiz-Castillo basicamente retrata a infância de Kubala em uma Hungria comunista até encontrar os momentos de “libertação” na Espanha de Franco,  uma “terra de paz e progresso”. A trama mostra o modelo ideal do cidadão, um exemplo de virtudes e valores e seus dilemas entre ceder às pressões ou manter-se fiel aos seus princípios. Hungria ou Espanha, comunismo ou a liberdade junto a sua família que só pôde encontrar quando chegou a Barcelona? Uma pessoa humilde, um lutador, um trabalhador, assim foi retratado.
Saeta rubia, por sua vez, dirigido em 1956 por Javier Setó, trazia consigo um Di Stéfano recém-campeão europeu com o Real Madrid FC (o clube viria a ganhar mais quatro títulos seguidos), uma pessoa com grande sensibilidade frente aos menos favorecidos e que alçava ao mesmo patamar seus valores cristãos e sua qualidade com la pelota. Um atleta com relação familiar estável que aproveitava suas influências sociais para conseguir trabalho aos demais. O sucesso foi tamanho que em 1962 foi convidado para atuar em La batalla del domingo.
O desporto, principal tema do Lírios do Esporte, é fenômeno social fundamental na formação da identidade espanhola, marcante não só no período da Falange, mas também sentido recentemente com o futebol tiki-taka pós-crise de 2008 e o basquetebol, em geração, que acaba de ter um ciclo vitorioso encerrado após o fim do Mundial. Os heróis dos esportes se convertem, não só na Espanha, como também no restante do mundo, em modelos de cidadãos para as plateias, assim como o futebol se torna o meio ideal para a ascensão social.
Cinema e o futebol, cercados por uma conjuntura favorável, estreitaram uma relação antes mantida distante, entre duas das atividades mais populares durante o franquismo. As salas de cinema se tornaram cada vez mais lotadas, a rivalidade se tornou cada vez mais latente entre Barcelona FC e Real Madrid FC, as disputas pela contratação dos craques estrangeiros aumentaram e a primeira Eurocopa espanhola frente à União Soviética foi conquistada.

A relação cinema e futebol se tornou tão frutífera que foi reproduzida, ou já havia sido utilizada, por inúmeros outros países, como na Itália em La domenina della buona gente (1948) e Undici uomini e um pallone (1948). Na Inglaterra, berço do esporte, em The stars look down (1940). Na Argentina com Pelota de trapo (1948) e, é claro, no Brasil em Campeão do futebol, em 1931, e Garrincha, alegria do povo, logo após a conquista do mundial de 1962.

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