Cinema e futebol nos tempos do franquismo
Há algumas postagens, escrevi acerca da relação existente
entre a música, o futebol e a rivalidade que permeia as cidades britânicas de
Liverpool e Manchester. Dessa vez, o território escolhido foi a Espanha,
sobretudo as cidades de Madrid e Barcelona. Os parâmetros? Futebol e a sétima
arte, o cinema.
Uma grande expressão dessa rivalidade se deu durante o
regime do ditador Francisco Franco, chefe de Estado espanhol que perdurou no
poder por quase três décadas (1936-75). O cinema e, sobretudo, o futebol foram
impactantes para a implantação de modelos e referências sociais na Espanha de
Franco. Durante a década de 1950 o esporte se consolidava e seus maiores nomes passaram
a ser alçados ao status de heróis nacionais.
À época o Real Madrid FC contava em seu elenco com o
argentino Di Stéfano, falecido ainda esse ano e considerado pelo próprio clube
o maior que já pisou nos gramados madrilenos. O maior rival catalão não saía atrás
e trazia na figura de Kubala, seu ídolo maior. Kubala, menos conhecido que Di
Stéfano, foi considerado, em eleição dos torcedores da equipe catalã, o melhor
jogador dos primeiros cem anos de clube. Fato curioso é que os dois também
marcam história ao se tornarem os únicos a defenderem três seleções nacionais,
prática hoje vedada.
Futebol e cinema sempre foram grandes competidores dentro do
mercado de entretenimento e os dois conjuntamente eram essenciais para
recuperação espanhola após um longo pós-guerra e, tão logo, se uniram como
ferramenta de projeção do regime. As atuações de estrelas do esporte em filmes
já se faziam sentir antes mesmo da Guerra Civil espanhola, como em Por fin se casa Zamora! (1927). Durante o regime a relação começa a ser
marcada em 1942 com Campeones, seguido
de muitos outros, como Once pares de
botas (1954), Los económicamente
débiles (1960) e Los de la furia
(1962).
Mas os dois filmes que marcaram o ciclo foram Los ases buscan la paz (1954) e Saeta rubia (1956), protagonizados pelos
grande nomes locais. Apesar dos filmes não se apresentarem como primores
técnicos, são representações de ferramentas copiadas em todo o mundo para
difundir as massas num modelo de realização masculina, promotora do regime. Os
maiores ídolos espanhóis à época eram, sem dúvidas, as estrelas do futebol e os
mesmos reuniam um conjunto de valores humanos que permitiram que se
convertessem em valores para a sociedade, dentro e fora dos gramados.
O franquismo, tal qual o período varguista e a ditadura
militar no Brasil, utilizou o futebol como instrumento de manutenção do governo
e tratou de utilizá-lo junto ao cinema em como fator fundamental para formação
de identidades e modelos sociais, conseguindo aglutinar diversas tendências
sociais e políticas conservadoras. Ao mesmo passo, o impacto massivo do cinema
permitiu fazer do mesmo uma ferramenta ideológica decisiva, controlado desde o
início e utilizado como meio de propaganda e de educação de massa durante o
regime.
Os filmes produzidos até então, tais quais La leona de Castilla e Alba
de América (1951), traziam grande carga histórica e literária, marcada por
forte influência neorrealista, o que muitas vezes confrontavam os interesses
nacionais. Outros gêneros tratados eram as comédias, o cinema musical
folclórico, atrelados à tradição da Anadalucía, e os espetáculos com a presença de
estrelas infantis. Apesar de a década de 50 marcar o principal momento da
sétima arte espanhola até então, com a forte presença do regime, vários gêneros
e filmes passam a ser censurados, marcando a abertura de um caminho de cinema
clandestino, tomado por denúncias de miséria e desigualdades sociais.
O projeto desportivo espanhol, após a tomada do poder da
Falange, estava em decadência, e restava aos aficionados o depósito de
confiança nas estrelas individuais. O autor Santander Fernandez, em sua obra El Futbol durante la Guerra civil y el Franquismo,
afirma que
nessa época, em um país de espectadores, o futebol se converteu em um
fenômeno
social. O governo passa a utilizar-se desse panorama de mobilização
política principalmente após a chegada dos estrangeiros: Puskas, Di
Stéfano e Kubala. Ao mesmo tempo, o futebol se torna um pilar da cultura
de
evasão do franquismo.
Em Los ases buscan la
paz, o filme dirigido por José Ruiz-Castillo basicamente retrata a infância
de Kubala em uma Hungria comunista até encontrar os momentos de “libertação” na
Espanha de Franco, uma “terra de paz e progresso”. A trama mostra o modelo
ideal do cidadão, um exemplo de virtudes e valores e seus dilemas entre ceder às
pressões ou manter-se fiel aos seus princípios. Hungria ou Espanha, comunismo
ou a liberdade junto a sua família que só pôde encontrar quando chegou a Barcelona?
Uma pessoa humilde, um lutador, um trabalhador, assim foi retratado.
Saeta rubia, por
sua vez, dirigido em 1956 por Javier Setó, trazia consigo um Di Stéfano recém-campeão
europeu com o Real Madrid FC (o clube viria a ganhar mais quatro títulos seguidos),
uma pessoa com grande sensibilidade frente aos menos favorecidos e que alçava
ao mesmo patamar seus valores cristãos e sua qualidade com la pelota. Um atleta com relação familiar
estável que aproveitava suas influências sociais para conseguir trabalho aos
demais. O sucesso foi tamanho que em 1962 foi convidado para atuar em La batalla del domingo.
O desporto, principal tema do Lírios do Esporte, é fenômeno
social fundamental na formação da identidade espanhola, marcante não só no
período da Falange, mas também sentido recentemente com o futebol tiki-taka pós-crise de 2008 e o
basquetebol, em geração, que acaba de ter um ciclo vitorioso encerrado após o fim do
Mundial. Os heróis dos esportes se convertem, não só na Espanha, como também no
restante do mundo, em modelos de cidadãos para as plateias, assim como o
futebol se torna o meio ideal para a ascensão social.
Cinema e o futebol, cercados por uma conjuntura favorável,
estreitaram uma relação antes mantida distante, entre duas das atividades mais
populares durante o franquismo. As salas de cinema se tornaram cada vez mais
lotadas, a rivalidade se tornou cada vez mais latente entre Barcelona FC e Real
Madrid FC, as disputas pela contratação dos craques estrangeiros aumentaram e a
primeira Eurocopa espanhola frente à União Soviética foi conquistada.
A relação cinema e futebol se tornou tão frutífera que foi
reproduzida, ou já havia sido utilizada, por inúmeros outros países, como na
Itália em La domenina della buona gente
(1948) e Undici uomini e um pallone
(1948). Na Inglaterra, berço do esporte, em The
stars look down (1940). Na
Argentina com Pelota de trapo (1948)
e, é claro, no Brasil em Campeão do
futebol, em 1931, e Garrincha,
alegria do povo, logo após a conquista do mundial de 1962.
Nenhum comentário:
Postar um comentário