Ausência de negros nas piscinas: fatores biomecânicos ou socioeconômicos?
O primeiro ouro olímpico conquistado por um
nadador negro aconteceu somente em 1988, em Seul, quando Anthony Nesty, representando
o Suriname, desbancou os favoritos nos 100m borboleta. Anthony Nesty só teve a
oportunidade de nadar em alto rendimento por ter recebido uma bolsa para
estudar nos EUA. Tornou-se ídolo nacional e teve sua face emitida em moedas
comemorativas do país e hoje dá nome até mesmo ao avião presidencial. O
primeiro bronze, por sua vez, já havia sido conquistado pela holandesa Enith
Brigitha, doze anos antes, em Montreal.
Já no Brasil, a primeira medalha veio apenas em
2000, em Sidney, com o bronze do baiano Edvaldo Valério no revezamento dos
4x100m livres. Nos dias atuais, dois atletas ganharam destaques nas equipes
representantes do Brasil, Gabriel Mangabeira, com resultados expressivos em
Pan-Americanos e o macapaense aposentado em 2009, Jáder Souza. Fato é que há
registros de um maior número de participantes e resultados expressivos de negros em competições de natação de
alto rendimento, tal como o vice-campeonato mundial de Etiene Medeiros em 2008,
mas a mudança é vagarosa.
Muitas teorias foram utilizadas para tentar levantar o motivo pelo qual os melhores velocistas do atletismo teriam
ascendência africana, enquanto na natação, tal tendência seja de brancos. Adrian
Bejan, da Universidade de Duke, acredita que essa discrepância de resultados se
dá pela diferença no centro de gravidade dos atletas. Para ele, os atletas
negros possuem membros mais longos com circunferências menores, fazendo com que
seus centros de gravidade sejam mais elevados. A locomoção, como um processo
contínuo de cair para frente, restaria prejudicada caso a altura do competidor seja
menor no atletismo. Essa diferença tomaria posição contrária dentro das piscinas.
Outras
justificativas biomecânicas se apoiam na
densidade óssea, na porcentagem de gordura corporal, na disposição de
diferentes fibras musculares, além de um músculo torácico maior em
brancos,
enquanto em negros os músculos glúteos seriam mais fortes. Todos esses
aspectos
afetariam na manutenção da flutuabilidade, essencial para se reduzir a
resistência criada pela piscina. Nas provas de travessia, a diferença
de resultados não é tão gritante. A diferença, portanto, apesar de
talvez
sofrer alguma influência em características marcantes em brancos ou
negros, não
pode se concluir apenas apoiado tais fatores, mas, sobretudo, deve-se
basear em fatores socioeconômicos.
A
população menos favorecida não possui acesso
a clubes e escolas de natação com orientação especializada e a formação
acaba
sendo defasada. O esporte praticado em alto rendimento se compõe
decisivamente
na fase de formação de seus atletas. Podemos facilmente observar o que
ocorre também em outros esportes como Iatismo, Fórmula 1 e Tênis, e
mesmo que nos dois
últimos tenhamos negros como grandes expressões, tais quais, Lewis
Hamilton e
Tiger Woods, podemos tranquilamente afirmar que são exceções à regra.
Hamilton, inclusive, foi o primeiro negro a guiar um carro na principal
categoria do automobilismo.
Isso decorre de restrições biomecânica? Não, mas de carência de
oportunidades
provocada por fatores de outra ordem.
Mesmo a África do Sul que venceu o Troféu Chico
Piscina em 2004 com dois negros, nunca havia tido negros em seu selecionado. Em
Atenas, apenas dois negros chegaram às finais, entre eles Gabriel Mangabeira. O
primeiro norte americano negro a compor a vaga na equipe nacional para disputar
os Jogos Olímpicos foi em Anthony Ervin e tal fato só ocorreu em 2000. Na
Grã-Bretanha o fato isolado ocorreu em 1980 com Paul Marshall. No Brasil, a
primeira medalha em mundiais veio do conterrâneo de Edvaldo Valério, Mateus
Lordelo, em 1999, na prova dos 200m borboleta.
O suporte do atleta na iniciação à modalidade é
essencial para seu desenvolvimento. Suporte esse que não se resume a incentivo
familiar, mas, também, técnico e psicológico. No alto rendimento, centésimo de
segundos resumem uma vitória e muitos desses tempos são conquistados pelo
refinamento técnico e preparo psicológico. Para um jovem negro, é muito mais provável
a escolha pela prática do atletismo e de esportes coletivos populares, tendo em
vista as dificuldades que enfrentará se tomar a decisão pela natação.
Há quem afirme que há décadas passadas, até
mesmo no Corinthians, atletas negros eram proibidos de entrar na piscina, pois
eram vetados já no exame médico. Ainda hoje é de conhecimento geral que existem
tradicionais clubes sociais na cidade de São Paulo que criam inúmeras
dificuldades para que negros se tornam membros do quadro efetivo de associados.
Um momento marcante no esporte que demonstra a
dificuldade do acesso a esportes por indivíduos que não têm oportunidades a
treinamentos de iniciação ou formação se deu nos Jogos Olímpicos de Los
Angeles, quando o canoísta canadense, Alwyn Morris, um índio mohawk nativo da
reserva de Caughawaga, levantou no alto do pódio, uma pena de águia estilizada,
homenageando os povos nativos da região.
Os estereótipos e suas representações, por vezes, são recepcionados até mesmo num mecanismo contraditório de
encarnação do espírito olímpico, reafirmando mitos racistas. Um exemplo
bastante claro desse fato se deu na representação da mídia nas coberturas dos atletas
da Guiné Equatorial nos Jogos de Sidney, em 2000. Eric Muossambani e Paula
Bolopa se classificaram para os Jogos em um programa do COI (Comitê Olímpico
Internacional) financiado pelo programa Solidariedade Olímpica. O programa
transfere uma parte dos rendimentos do COI para um programa de desenvolvimento
que pretende atrair atletas de países que na maioria das vezes não são
representados nas competições. Bom lembrar que tais atletas não precisam
atingir os índices de classificação estabelecidos pelas federações.
Guiné Equatorial nunca teve um programa
nacional de natação. Enquanto Bolopa aprendeu a nadar em um rio da região de
Malabo, Moussambani nadava enquanto os hóspedes de um hotel local não
utilizavam a piscina de 20m. Moussambani tornou-se história ao disputar com dificuldades uma
prova de eliminatórias sozinho. Os dois outros competidores, da Nigéria e do
Tadjiquistão, queimaram a largada e aconteceu uma comoção no estádio com a presença solitária de Moussambani nas águas e mais de
17 mil pessoas presentes no que Ben Carrington denominou "olimpismo
cosmopolita", onde haveria uma transcendência de nacionalidade e dos
atributos raciais.
Contudo, o que caminharia para ser uma história
símbolo do olimpismo de participação, começou a tomar outro rumo no Canadá, a
fim de contornar o fraco desempenho da equipe nos jogos. Passou-se a relacionar
a nacionalidade dos atletas africanos ao estereótipo de que negros não sabem
nadar. O tom humorístico de narração do canal CBC canadense tomou conta da
equipe de cobertura de natação do centro de comunicações. Moussambani que ficou
marcado como "o lesma" e "enguia" pelos comentaristas, por
se debater nas águas, começara a nadar há apenas sete meses antes.
Moussambani tentou obter, em Sidney, uma
identidade que é negada a negros pela imaginação popular e, mais ainda, pela mídia.
O estereótipo criado de que negros não sabem nadar não são apenas rotulações ou
mitos generalizados a respeito de determinados grupos. Tais estereótipos afetam
de maneira drásticas as identidades por meio de relações de poder, servindo
para classificar atletas por meio de comportamentos, características e
histórias, desumanizando os estereotipados, conforme Stuart Hall afirma, e
impedindo-os de ter um desenvolvimento e interações sociais que a eles façam
sentido.
Ainda
há muitas barreiras a serem quebradas
para a homogeneidade de oportunidades e a ascendência de novos Hamilton,
Tiger
Woods e Arthur Ashe. A natação ainda é esporte para poucos e mesmo o
barbarense César Cielo ainda não será capaz de popularizar o esporte,
tal qual
tentou Guga e Daiane dos Santos. Para a massificação da natação é
necessário
que haja mais piscinas públicas ou em comunidades carentes para que
jovens
menos favorecidos possam ter a oportunidade de ao menos desenvolver
capacidade
motora e se interessem pela prática da modalidade. Mais do que tudo,
políticas
públicas devem ser realizadas, de conscientização e de fomento ao
esporte orientado.
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