Mário Filho, não só o do Maracanã, mas do Brasil
Em 1966, poucos meses após o fim da Copa do Mundo na
Inglaterra, Nelson Rodrigues precisou escrever a sua crônica mais dolorida. Um
ataque cardíaco foi responsável pelo falecimento do “criador de multidões”,
conforme o próprio cronista e teatrólogo certa vez definiu seu irmão, talvez
não tão reconhecido quanto ele, Mário Rodrigues Filho.
Se a máxima que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar
estivesse vigente, o futebol faria as vezes de derrubá-la, se não com o Santos
de Neymar e Pelé, talvez com os Rodrigues pernambucanos. Em época de Copa, a época
é também de revelar os caminhos traçados até aqui, os caminhos da identidade
nacional brasileira. Mário era rubro-negro e Nelson, tricolor.
Mário Filho, uma das personalidades “cariocas” mais ativas e
criativas da primeira metade do século, veio cedo para o Rio de Janeiro e de lá
revolucionou as massas. Percebeu que no futebol haviam dois personagens que
realmente interessavam: o jogador e o torcedor. Matéria-prima para as crônicas
que consagrariam o irmão, como a síndrome de vira-latas, o sobrenatural de
Almeida, o Gravatinha e o óbvio ululante.
O “criador de multidões” tirou o jornalismo desportivo da
marginalidade e o fez com que chegasse às primeiras páginas. Em uma das
passagens mais marcantes, ficou responsável pelo fechamento da edição do jornal
“Crítica” de propriedade de seu pai, o qual repugnava o esporte bretão.
Preencheu a capa com a partida entre Flamengo e Vasco nas Laranjeiras que
ocorrera no dia anterior. Resultado: não sobraram quaisquer exemplares nas
bancas.
Os jornais a partir dessa época passaram a reproduzir, em
suas linhas, os melhores momentos das partidas, meio utilizado até hoje pela grande
mídia. Fundou, em 1931, “O Mundo Sportivo”, primeiro jornal dedicado
exclusivamente ao desporto no Brasil. Um ano depois foi responsável por promover
e organizar o primeiro concurso de escolas de samba do Rio na Praça Onze, dando
origem ao “maior espetáculo da terra”.
Levou a animação das escolas de samba para os estádios e
passou a promover concursos para as torcidas mais animadas nas partidas e criou
a eterna expressão “Fla-Flu”, ou melhor, tornou o maior da história ainda mais
eterno o transformando em Rei, como chamou pela primeira vez o “Rei Pelé”.
Quando chega ao “O Globo” com seu parceiro de sinuca Roberto
Marinho, fomenta ainda mais a popularização do futebol e decide comprar o “Jornal
dos Sports”, famoso pela sua cor-rosa, cor que remetia ao francês L’Auto e não ao italiano La Gazzetta dello Sport, como muitos
acreditavam. O “Jornal dos Sports” teve suas publicações realizadas até meados
de 2010. Nos anos 40 passou a reproduzir o Campeonato Carioca a partir de tiras
e quadrinhos fazendo escola novamente.
Mas foi a mesma Copa do Mundo, nos mesmos terrenos em que
hoje se hospeda, que consagrou o gênio. Ary Barroso, o mineiro de Ubá marcado
por “Aquarela do Brasil” e, à época, vereador, apresentou um projeto de
construção de um grande estádio municipal. Acabou por criar uma disputa épica.
Enquanto o Dep. Federal Carlos Lacerda militava para que a construção se desse
em Jacarepaguá, surge Mário Filho na defesa de que o estádio deveria ser
construído no antigo terreno do Derby Club, no bairro Maracanã.
Mário Filho inicia a redação de uma série de artigos defendendo
a construção do maior do mundo que abrigaria as “multidões imortais” de Nelson
Rodrigues. Seu maior defensor ganha a homenagem do gigante que, apesar de
abrigar a final da Copa do Mundo, só teve suas obras acabadas em 1965. Estádio Jornalista Mário Filho, o “Maracanã”.
Foi ainda responsável pela criação dos Jogos da Primavera,
em 1947, do Torneio da Pelada do Aterro do Flamengo e dos Jogos Infantis, em
1951, além de ter proposto a criação do Torneio Rio-São Paulo, oficialmente
chamado de Torneio Roberto Gomes Pedrosa em homenagem ao dirigente a goleiro paulista,
esse tão conhecido pelos são-paulinos, pois leva seu nome a praça que abriga o Estádio
do Morumbi. O “Robertão” foi o embrião
do atual Campeonato Brasileiro, o que se confirmou com o reconhecimento dos
títulos nacionais pela CBF em 2010.
Não satisfeito por todo o seu legado, publicou ainda o que
viria a ser, para muitos, um dos maiores livros da literatura desportiva
nacional, “O Negro no Futebol Brasileiro”. Tal livro é comparado aos grandes
ensaios de interpretação da formação e da identidade brasileira ao lado de “Casa
Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, o qual assinou o seu primeiro
prefácio em 1947, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr.
A
pedagogia anti-racista e o ataque à idealizada democracia
racial acabaram sendo abarcados pela força das narrativas de Mário Filho
sobre
a trajetória do herói negro no futebol, recontando a história do futebol
e criando o mito do estilo brasileiro de futebol. Mito tal qual
definiu Ian Watt, “uma história tradicional largamente conhecida no
âmbito da cultura,
que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que
encarna ou
simboliza alguns valores básicos de uma sociedade".
Não há dúvidas do tamanho da herança que Mário Filho deixou
para o Brasil e ainda hão de serem reconhecidos os esforços e as obras do “criador
das multidões”, o maior propulsor de popularização do futebol que talvez o
Brasil tenha visto. Maracanã.
"O branco dos fields, dos grandes clubes, tendo ainda por cima um professor, o capitão do time gritando sem parar, em inglês, o preto das peladas, das ruas, não tendo ninguém. A única coisa que o ajudava era a intuição...". (O Negro no futebol brasileiro, p. 60).
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