sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Mário Filho, não só o do Maracanã, mas do Brasil

Em 1966, poucos meses após o fim da Copa do Mundo na Inglaterra, Nelson Rodrigues precisou escrever a sua crônica mais dolorida. Um ataque cardíaco foi responsável pelo falecimento do “criador de multidões”, conforme o próprio cronista e teatrólogo certa vez definiu seu irmão, talvez não tão reconhecido quanto ele, Mário Rodrigues Filho.

Se a máxima que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar estivesse vigente, o futebol faria as vezes de derrubá-la, se não com o Santos de Neymar e Pelé, talvez com os Rodrigues pernambucanos. Em época de Copa, a época é também de revelar os caminhos traçados até aqui, os caminhos da identidade nacional brasileira. Mário era rubro-negro e Nelson, tricolor.

Mário Filho, uma das personalidades “cariocas” mais ativas e criativas da primeira metade do século, veio cedo para o Rio de Janeiro e de lá revolucionou as massas. Percebeu que no futebol haviam dois personagens que realmente interessavam: o jogador e o torcedor. Matéria-prima para as crônicas que consagrariam o irmão, como a síndrome de vira-latas, o sobrenatural de Almeida, o Gravatinha e o óbvio ululante.

O “criador de multidões” tirou o jornalismo desportivo da marginalidade e o fez com que chegasse às primeiras páginas. Em uma das passagens mais marcantes, ficou responsável pelo fechamento da edição do jornal “Crítica” de propriedade de seu pai, o qual repugnava o esporte bretão. Preencheu a capa com a partida entre Flamengo e Vasco nas Laranjeiras que ocorrera no dia anterior. Resultado: não sobraram quaisquer exemplares nas bancas.

Os jornais a partir dessa época passaram a reproduzir, em suas linhas, os melhores momentos das partidas, meio utilizado até hoje pela grande mídia. Fundou, em 1931, “O Mundo Sportivo”, primeiro jornal dedicado exclusivamente ao desporto no Brasil. Um ano depois foi responsável por promover e organizar o primeiro concurso de escolas de samba do Rio na Praça Onze, dando origem ao “maior espetáculo da terra”.

Levou a animação das escolas de samba para os estádios e passou a promover concursos para as torcidas mais animadas nas partidas e criou a eterna expressão “Fla-Flu”, ou melhor, tornou o maior da história ainda mais eterno o transformando em Rei, como chamou pela primeira vez o “Rei Pelé”.

Quando chega ao “O Globo” com seu parceiro de sinuca Roberto Marinho, fomenta ainda mais a popularização do futebol e decide comprar o “Jornal dos Sports”, famoso pela sua cor-rosa, cor que remetia ao francês L’Auto e não ao italiano La Gazzetta dello Sport, como muitos acreditavam. O “Jornal dos Sports” teve suas publicações realizadas até meados de 2010. Nos anos 40 passou a reproduzir o Campeonato Carioca a partir de tiras e quadrinhos fazendo escola novamente.

Mas foi a mesma Copa do Mundo, nos mesmos terrenos em que hoje se hospeda, que consagrou o gênio. Ary Barroso, o mineiro de Ubá marcado por “Aquarela do Brasil” e, à época, vereador, apresentou um projeto de construção de um grande estádio municipal. Acabou por criar uma disputa épica. Enquanto o Dep. Federal Carlos Lacerda militava para que a construção se desse em Jacarepaguá, surge Mário Filho na defesa de que o estádio deveria ser construído no antigo terreno do Derby Club, no bairro Maracanã.

Mário Filho inicia a redação de uma série de artigos defendendo a construção do maior do mundo que abrigaria as “multidões imortais” de Nelson Rodrigues. Seu maior defensor ganha a homenagem do gigante que, apesar de abrigar a final da Copa do Mundo, só teve suas obras acabadas em 1965. Estádio Jornalista Mário Filho, o “Maracanã”.

Foi ainda responsável pela criação dos Jogos da Primavera, em 1947, do Torneio da Pelada do Aterro do Flamengo e dos Jogos Infantis, em 1951, além de ter proposto a criação do Torneio Rio-São Paulo, oficialmente chamado de Torneio Roberto Gomes Pedrosa em homenagem ao dirigente a goleiro paulista, esse tão conhecido pelos são-paulinos, pois leva seu nome a praça que abriga o Estádio do Morumbi.  O “Robertão” foi o embrião do atual Campeonato Brasileiro, o que se confirmou com o reconhecimento dos títulos nacionais pela CBF em 2010.

Não satisfeito por todo o seu legado, publicou ainda o que viria a ser, para muitos, um dos maiores livros da literatura desportiva nacional, “O Negro no Futebol Brasileiro”. Tal livro é comparado aos grandes ensaios de interpretação da formação e da identidade brasileira ao lado de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, o qual assinou o seu primeiro prefácio em 1947, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr.

A pedagogia anti-racista e o ataque à idealizada democracia racial acabaram sendo abarcados pela força das narrativas de Mário Filho sobre a trajetória do herói negro no futebol, recontando a história do futebol e criando o mito do estilo brasileiro de futebol. Mito tal qual definiu Ian Watt, “uma história tradicional largamente conhecida no âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que encarna ou simboliza alguns valores básicos de uma sociedade".

Não há dúvidas do tamanho da herança que Mário Filho deixou para o Brasil e ainda hão de serem reconhecidos os esforços e as obras do “criador das multidões”, o maior propulsor de popularização do futebol que talvez o Brasil tenha visto. Maracanã.


"O branco dos fields, dos grandes clubes, tendo ainda por cima um professor, o capitão do time gritando sem parar, em inglês, o preto das peladas, das ruas, não tendo ninguém. A única coisa que o ajudava era a intuição...". (O Negro no futebol brasileiro, p. 60).

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