A Copa do Mundo de 1938 e uma identidade nacional brasileira
Na última postagem tentei demonstrar como o futebol se
tornou um importante fator de integração nacional no continente africano, mas
não o foi só lá. No Brasil esse sentimento transformou as bases sociais em 1938,
na Copa do Mundo realizada na França, com a ascensão de dois negros ao status de ídolos nacionais (Lêonidas da
Silva e Domingos da Guia) e a emblematização de um fenômeno que se consolidaria
no país: a popularização do futebol e a utilização deste como meio de catálise
da identidade nacional brasileira.
O final do séc. XIX marcou a chegada do esporte para o
Brasil, contudo seus primeiros momentos de prática se traduziam em um traço
distintivo de alguns jovens em relação ao restante da sociedade brasileira. O
intuito era nítido, exaltação dos hábitos e modo de vida europeus, tão
almejados pela elite nacional. Era comum as famílias abastadas enviarem seus
filhos à Europa para um período de estudos, já que o ensino no Brasil era
defasado e longe de ser democrático. Em seus retornos, os jovens traziam um
pouco dos costumes europeus, inspirados, sobretudo, nos padrões franceses.
Com o decorrer do tempo, o futebol começou a atrair a
população marginalizada. A prática que inicialmente se dava exclusivamente nos
clubes de elite, principalmente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro,
começou a se popularizar e concomitantemente ao fenômeno de industrialização,
se percebeu uma intensificação da sua prática nos bairros operários. Até esse
período, os esportes mais praticados eram o turfe e o remo, esportes estes que
deram origem a inúmeras entidades conhecidas atualmente pelo futebol.
A recém instaurada república despertou um sentimento de
mudança, embora tenho sido proclamada sem a iniciativa popular, e trouxe a
reforma educacional dos anos 1920 junto às pretensões de promover uma
uniformidade ao Brasil. A Primeira Guerra Mundial, colabora, provocando uma
descrença dos valores europeus tão almejados de promoção da ordem, do progresso
e da ciência como garantia de paz.
Nesse momento torna-se necessário repensar o que viria a ser
o Brasil e ganha-se força o movimento modernista na tentativa de criar
referencias até então deixadas de lado pela nação. Naturalmente, o futebol era
visto pelos modernistas como fator determinante de identidade nacional, via
antropofagia, entretanto alguns intelectuais como Graciliano Ramos, em 1921, na
crônica “Traças a Esmo” publicada no jornal O Índio e Lima Barreto em seu
“Football”, de 1922, não a aceitavam. As contestações de Lima Barreto não
surpreendiam, haja vista sua característica de “literatura militante” e crítico
dos padrões culturais da burguesia nacional.
O Brasil do samba, da mulata, do carnaval e do malandro surge
nesta época. Um contexto propício se desenvolve para que organizações da classe
trabalhadores formem seus próprios clubes para praticarem o futebol. O Vasco
era uma das poucas entidades, até então, que aceitavam negros em seu elenco e os recebiam
com simpatia.
Alcançados os anos de 1930 não haviam mais grandes discussões
se o “esporte bretão” fora assimilado no Brasil ou não, tendo em vista sua
popularidade incontestável. O futebol abocanhava cada vez mais adeptos e a
imprensa esportiva fazia o seu papel com a consolidação do rádio no país. No
campo intelectual, a discussão recaía sobre a definição de brasilidade, quais
seriam os fatores que diferenciavam o brasileiro em relação ao europeu, aos
outros povos. Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala” parecia ter uma
resposta, a mistura promovida no período colonial brasileiro entre portugueses,
índios e negros seria um fator enaltecedor e não depreciativo do povo
brasileiro.
O governo varguista percebeu o apelo mobilizador e popular
do esporte e não menosprezou sua popularidade, tanto que o transformou em
grande propaganda do Estado Novo e, assim, não tardou para firmar a visão de
que o sucesso era esforço do governo, promotor do nacionalismo, estimulador da
identidade nacional e sintetizador da brasilidade, servindo como uma espécie de
confirmação das teorias raciais criadas na década de 1930. Do futebol como
instrumento de propaganda se utilizou o regime militar da forma que lecionou o
governo varguista. (escrevi um artigo sobre isso no Jornal Vanguarda, “Futebol...”, 4 ed., 2014).
A conquista do Sul Americano pela seleção já em 1919
amadurecia a idéia de que “talvez em alguma coisa não fôssemos inferiores”,
conforme afirmou Décio de Lameida Prado. A primeira Copa, realizada em 1930 no
Uruguai, rendeu bastante polêmica, como consequência da rivalidade entre São
Paulo e Rio de Janeiro, os polos promotores de atletas. Numa repercussão,
talvez, das discussões travadas à época, sobre qual das cidades estaria apta a
ditar os rumos do futuro da nação. A polêmica se deu quando a Confederação
Brasileira de Desportos ignorou um pedido da Associação Paulista de Esportes
Atléticos em relacionar um representante seu na comissão técnica. A entidade
paulista resolveu vetar a participação de seus filiados e o time foi desfalcado
pela metade.
Em 1934, apesar do grande incentivo midiático ao esporte, época
em que eram transmitidas pelo rádio até mesmo as partidas de “várzea”, uma
grande discussão estava em torno da profissionalização do futebol. As duas
maiores associações, decididas a profissionalizá-lo, criaram a Federação
Brasileira de Futebol, entretanto a CBD reiterava seu caráter de promoção do
futebol amador. O conflito se resolveu com a não-cessão dos jogadores
profissionais para o selecionado da CBD. Derrota frente à Espanha na única
partida disputada.
O selecionado brasileiro da Copa do Mundo de 1938, diferentemente
dos quadriênios anteriores, se mostrou um legítimo representante do povo
brasileiro pela sua formação heterogênea de atletas dos mais diversos cantos do
país, de diferentes etnias e condições socioeconômicas. Os atletas negros, os
quais apenas uma década antes do início do torneio tinham sua atuação limitada
até mesmo por cláusulas nos estatutos dos próprios clubes ou nos regulamentos
das competições, numa herança do período pré-abolicionista, se transformaram em
heróis nacionais.
Um grande expositor desses acontecimentos foi o jornal
Diário de S. Paulo
que em 16 de Julho de 1938 anunciou o lançamento do até
hoje conhecido chocolate Diamante Negro: “o chocolate dos ‘cracks’ e o
‘crack’
dos chocolates”. Diamante Negro, como era conhecido Leônidas da Silva,
confirmou
o sentimento. O artilheiro daquela edição do mundial e inventor da
"bicicleta", que Neymar tentou no amistoso de ontem contra o Panamá, foi
um dos grandes
responsáveis pelo elemento de catarse do nacionalismo e identidade
nacional
brasileira, transformando o futebol em elemento distintivo do nosso
povo, o que
se faz sentir até os dias de hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário