sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A Copa do Mundo de 1938 e uma identidade nacional brasileira

Na última postagem tentei demonstrar como o futebol se tornou um importante fator de integração nacional no continente africano, mas não o foi só lá. No Brasil esse sentimento transformou as bases sociais em 1938, na Copa do Mundo realizada na França, com a ascensão de dois negros ao status de ídolos nacionais (Lêonidas da Silva e Domingos da Guia) e a emblematização de um fenômeno que se consolidaria no país: a popularização do futebol e a utilização deste como meio de catálise da identidade nacional brasileira.

O final do séc. XIX marcou a chegada do esporte para o Brasil, contudo seus primeiros momentos de prática se traduziam em um traço distintivo de alguns jovens em relação ao restante da sociedade brasileira. O intuito era nítido, exaltação dos hábitos e modo de vida europeus, tão almejados pela elite nacional. Era comum as famílias abastadas enviarem seus filhos à Europa para um período de estudos, já que o ensino no Brasil era defasado e longe de ser democrático. Em seus retornos, os jovens traziam um pouco dos costumes europeus, inspirados, sobretudo, nos padrões franceses.

Com o decorrer do tempo, o futebol começou a atrair a população marginalizada. A prática que inicialmente se dava exclusivamente nos clubes de elite, principalmente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, começou a se popularizar e concomitantemente ao fenômeno de industrialização, se percebeu uma intensificação da sua prática nos bairros operários. Até esse período, os esportes mais praticados eram o turfe e o remo, esportes estes que deram origem a inúmeras entidades conhecidas atualmente pelo futebol.

A recém instaurada república despertou um sentimento de mudança, embora tenho sido proclamada sem a iniciativa popular, e trouxe a reforma educacional dos anos 1920 junto às pretensões de promover uma uniformidade ao Brasil. A Primeira Guerra Mundial, colabora, provocando uma descrença dos valores europeus tão almejados de promoção da ordem, do progresso e da ciência como garantia de paz.

Nesse momento torna-se necessário repensar o que viria a ser o Brasil e ganha-se força o movimento modernista na tentativa de criar referencias até então deixadas de lado pela nação. Naturalmente, o futebol era visto pelos modernistas como fator determinante de identidade nacional, via antropofagia, entretanto alguns intelectuais como Graciliano Ramos, em 1921, na crônica “Traças a Esmo” publicada no jornal O Índio e Lima Barreto em seu “Football”, de 1922, não a aceitavam. As contestações de Lima Barreto não surpreendiam, haja vista sua característica de “literatura militante” e crítico dos padrões culturais da burguesia nacional.

O Brasil do samba, da mulata, do carnaval e do malandro surge nesta época. Um contexto propício se desenvolve para que organizações da classe trabalhadores formem seus próprios clubes para praticarem o futebol. O Vasco era uma das poucas entidades, até então, que aceitavam negros em seu elenco e os recebiam com simpatia.

Alcançados os anos de 1930 não haviam mais grandes discussões se o “esporte bretão” fora assimilado no Brasil ou não, tendo em vista sua popularidade incontestável. O futebol abocanhava cada vez mais adeptos e a imprensa esportiva fazia o seu papel com a consolidação do rádio no país. No campo intelectual, a discussão recaía sobre a definição de brasilidade, quais seriam os fatores que diferenciavam o brasileiro em relação ao europeu, aos outros povos. Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala” parecia ter uma resposta, a mistura promovida no período colonial brasileiro entre portugueses, índios e negros seria um fator enaltecedor e não depreciativo do povo brasileiro.
O governo varguista percebeu o apelo mobilizador e popular do esporte e não menosprezou sua popularidade, tanto que o transformou em grande propaganda do Estado Novo e, assim, não tardou para firmar a visão de que o sucesso era esforço do governo, promotor do nacionalismo, estimulador da identidade nacional e sintetizador da brasilidade, servindo como uma espécie de confirmação das teorias raciais criadas na década de 1930. Do futebol como instrumento de propaganda se utilizou o regime militar da forma que lecionou o governo varguista. (escrevi um artigo sobre isso no Jornal Vanguarda, “Futebol...”, 4 ed., 2014).

A conquista do Sul Americano pela seleção já em 1919 amadurecia a idéia de que “talvez em alguma coisa não fôssemos inferiores”, conforme afirmou Décio de Lameida Prado. A primeira Copa, realizada em 1930 no Uruguai, rendeu bastante polêmica, como consequência da rivalidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, os polos promotores de atletas. Numa repercussão, talvez, das discussões travadas à época, sobre qual das cidades estaria apta a ditar os rumos do futuro da nação. A polêmica se deu quando a Confederação Brasileira de Desportos ignorou um pedido da Associação Paulista de Esportes Atléticos em relacionar um representante seu na comissão técnica. A entidade paulista resolveu vetar a participação de seus filiados e o time foi desfalcado pela metade.

Em 1934, apesar do grande incentivo midiático ao esporte, época em que eram transmitidas pelo rádio até mesmo as partidas de “várzea”, uma grande discussão estava em torno da profissionalização do futebol. As duas maiores associações, decididas a profissionalizá-lo, criaram a Federação Brasileira de Futebol, entretanto a CBD reiterava seu caráter de promoção do futebol amador. O conflito se resolveu com a não-cessão dos jogadores profissionais para o selecionado da CBD. Derrota frente à Espanha na única partida disputada.

O selecionado brasileiro da Copa do Mundo de 1938, diferentemente dos quadriênios anteriores, se mostrou um legítimo representante do povo brasileiro pela sua formação heterogênea de atletas dos mais diversos cantos do país, de diferentes etnias e condições socioeconômicas. Os atletas negros, os quais apenas uma década antes do início do torneio tinham sua atuação limitada até mesmo por cláusulas nos estatutos dos próprios clubes ou nos regulamentos das competições, numa herança do período pré-abolicionista, se transformaram em heróis nacionais.

Um grande expositor desses acontecimentos foi o jornal Diário de S. Paulo que em 16 de Julho de 1938 anunciou o lançamento do até hoje conhecido chocolate Diamante Negro: “o chocolate dos ‘cracks’ e o ‘crack’ dos chocolates”. Diamante Negro, como era conhecido Leônidas da Silva, confirmou o sentimento. O artilheiro daquela edição do mundial e inventor da "bicicleta", que Neymar tentou no amistoso de ontem contra o Panamá, foi um dos grandes responsáveis pelo elemento de catarse do nacionalismo e identidade nacional brasileira, transformando o futebol em elemento distintivo do nosso povo, o que se faz sentir até os dias de hoje.

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