sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Futebol nos anos de chumbo


Enquanto os barbudos da Sierra Maestra cativavam seguidores, principalmente os mais jovens com o “despertar do povo da América”, um pavor de uma nova Cuba e discussões sobre legitimidade percorriam o Brasil. O próprio presidente americano, Lyndon Johnson, tornou pública sua preocupação com o que poderia transformar o maior da América do Sul. Mas num despertar de olhos, fecharam-se as portas da democracia e “às favas, Sr. Presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”.


O futebol também sofreu suas interferências, sentidas até hoje com a renomeação do edifício da CBF para José Maria Marin, penúltimo governador de São Paulo nos anos de ditadura, com endereço à Av. Luiz Carlos Prestes, 130 (situação exposta no último artigo com mais profundidade). A maior paixão nacional não podia e não ficou invisível aos olhos do governo, e conforme lecionou o Estado Novo varguista, era única e uma grande oportunidade de transformar o futebol a maior propaganda do regime.


Em 1966, a expectativa em cima da seleção nacional era grande, mas a mesma se transforma em inúmeros títeres, num modelo sui generis, em que são selecionadas quatro equipes (verde, amarela, azul e branca). Isso mesmo, o número de convocados chegou a 47 e os mesmos ficavam revezando nas apresentações. Imperava no Brasil a fase dos preparadores físicos militares. Até mesmo o preparador físico Paulo Amaral dá lugar a Rudolf Hermanny, preparador de judô e de caças submarinas, cujos métodos nunca antes haviam sido testados na preparação do futebol. 


Numa esfera, a preocupação em preparar uma equipe qualificada e erguer a terceira taça seguida, em outra, fazer dela um instrumento de propaganda. E em três meses, as quatro equipes rodam o país se apresentando, num itinerário pré-definido pelo governo e pela Confederação Brasileira de Desporto (CBD), entidade responsável pela administração nacional do desporto, percorrendo capitais e cidades estratégicas do interior, sob comando do técnico Vicente Feola. Dentro de campo, o resultado era iminente, a Copa do Mundo de 1966 foi uma das piores da história para a seleção nacional.

Em 1969, o presidente da CBD, João Havelange nomeia como treinador João Saldanha, ex-militante do PCB e que cursou a Escola de Quadros da URSS em 53/55 e à época membro do Centro Brasil Democrático, organização de fachada do Partido Comunista. Contudo, mesmo que suspeito pelo regime, o mesmo gozava de grande popularidade e sua autonomia nunca fora antes contestada. Apenas nas vésperas da Copa de 1970, numa história até hoje não esclarecida, ele deixa o comando da seleção. Anos mais tarde, João Saldanha, apelidado por Nélson Rodrigues de João Sem-medo, viria a se tornar um dos maiores cronistas do jornalismo brasileiro.


Vários nomes são cotados para assumir seu lugar, mas era necessário que fosse algum aliado ou alguém que pudesse ser mais facilmente manipulado. Quem assume? Mário Jorge Lobo Zagallo, técnico do Botafogo que treinava diariamente na Escola de Educação Física do Exército. E os símbolos nacionais, incorporados pelo indomável regime, adquirem mais uma força, a Copa de 70, o primeiro mundial transmitido em cores. As cores que transmitiram um futebol vistoso dentro das quatro linhas, das feras de Saldanha como ficaram conhecidos os atletas na grande campanha nas eliminatórias, não transmitiram as masmorras e os subterrâneos de repressão no Brasil.

A comissão técnica passa a sofrer mais influência, construindo-se um aparato de segurança nacional e tecnocracia, num reflexo de ordem e progresso. Planejamento meticuloso que não abriu mão de mecanismos de fiscalização, controle e repressão. Na chefia da segurança foi nomeado o Major Roberto Guaranys, como reflexo das estratégias de infiltração que demonstravam vitória sobre a subversão. Major Guaranys, para se ter uma idéia, era um dos dos responsáveis pela execução do Caso Para-Sar, o atentado do gasômetro, no Rio de Janeiro. O plano terrorista, até hoje não elucidado, foi arquitetado pelo brigadeiro João Paulo Burnier para desacreditar e reprimir os oposicionistas e com um potencial de matar milhares de pessoas na detonação de explosivos em diversas vias públicas cariocas (seu companheiro de execução, o capitão Sérgio Macaco entrou para a história como o homem que disse não, recusando-se a cumprir ordens de Burnier).


Em 1971, com a criação do Campeonato Brasileiro, o futebol já demonstrava ser uma força sem precedentes de propaganda do regime, "o ópio do povo". Era extremamente interessante para os políticos terem clubes de futebol sob seus domínios em seus territórios, assim o governo passa a influenciar a CBD a incluir, a pedido de políticos locais, cada vez mais clubes no principal torneio. Nesse período que ficou conhecido o bordão do povo: "onde a ARENA vai mal, mais um time no nacional"

A relação futebol e ditadura não parava por aí, com grande influência no Sul do país, o delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Pedro Seelig, fazia o trânsito entre o esporte e a repressão, sendo comparado nos pampas a Sérgio Fleury e Coronel Brilhante Ustra. Por todos os cantos do Brasil o aparato de segurança nacional e tecnocracia foi construído, fazendo com que sintamos até hoje os seus reflexos nos campos brasileiros.


Nas palavras de Lúcio de Castro, “a memória deve ser recuperada e os arquivos abertos, para que enfim se possa pavimentar à estrada que leva ao nunca, nunca mais...

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