sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"A bola corre mais que os homens"

Estamos há quase um mês da Copa do Mundo de Futebol que ocorrerá no Brasil e me sinto na obrigação de reproduzir uma crônica do Roberto DaMatta, da série “a bola corre mais que os homens”, publicadas originalmente no Jornal da Tarde em 1994, entre 13 de junho e 15 de julho, durante a Copa do Mundo nos EUA. Devo deixar claro que o contexto histórico é outro e desenvolvimentos foram vistos, mas aqui a veja também como uma forma de homenagem ao autor. Antes, porém, uma citação do já falecido constitucionalista Celso Bastos que resume bem o desporto como expressão de cultura:

 “A prática desportiva não é algo decorrente da natureza instintiva do homem, mas sim de toda uma história – neste sentido, apresenta-se unido à natureza a qual já se fez menção. É por isto que há países que se esmeram e se destacam em determinada categoria esportiva, o que demonstra que o desporto é nitidamente atrelado à cultura de um povo que o pratica e, por outro lado, é uma manifestação da cultura desse povo.” (Celso Ribeiro Bastos, 1998)
“Vi Telê Santana afirmar que os americanos não sabem o que é uma Copa do Mundo de futebol. É pouco. Eles não têm nenhuma idéia do que é esse nosso "futibol". Sem terem paixão pelo "futibol" (que para nós é um jogo), para eles o futebol é apenas mais um esporte no qual 22 jogadores correm atrás de uma bola. Bola que, diferentemente da deles, não é um ovo que ao ser lançado transforma-se em bala, mas é realmente uma intrigante e incerta esfera. Uma bola a ser irracionalmente controlada e movimentada com os pés. Esses pés que falam de pernas, quadris e de outras partes situadas abaixo da cintura, esse quadrante abominado pela cultura burguesa em geral e pelo puritanismo americano em particular. Equador que delimita o que deve ser mostrado em sua pureza racional (o acima da cintura) e tudo o que se situa do lado de baixo e tem que ser escondido como sinal de incontrolável sensualidade.
Como, então, gostar de um jogo no qual se é obrigado a mover as cadeiras, a usar as coxas, a utilizar a cabeça e, sobretudo, a encostar-se malandra e sensualmente no adversário? Como ficar entusiasmado com um esporte que tem um pacto com a imprecisão e a incerteza precisamente porque é jogado com os pés e não com as mãos, esses instrumentos de exatidão e previsibilidade?
Nos Estados Unidos, "futibol" não é football, mas soccer. Diz o maravilhoso e corretíssimo mito de origem que ambos vieram do costume aldeão inglês de chutar cabeças de inimigos logo lamentavelmente substituídas por bolas de pano e couro. Dessa forma primitiva e lendária, surgiram três variantes esportivas: o rúgbi (muito popular entre a aristocracia inglesa), o futebol americano (um rúgbi mais sofisticado e agigantado pelo gosto americano da precisão, dos uniformes superequipados, das técnicas e de um campo milimetricamente marcado) e o football association, esse que roubamos de um dos nossos heróis civilizadores, os ingleses, e fizemos nosso.
Numa sociedade onde o controle motor não é muito valorizado (quem não se lembra dos filmes de Jerry Lewis?), o soccer é um jogo considerado muito difícil, pois requer imenso virtuosismo físico.  Ademais, é um jogo com escores muito baixos, o que não entusiasma muito essa sociedade fascinada por quantidades e que se deleita por ser dona das maiores cifras em todos os campos. Quem pode se interessar por um jogo onde, depois de 90 minutos de dura disputa, não há nenhum ponto, como é comum no soccer! E quem se interessa por uma atividade que proíbe a tática, o plano, o uso do diagrama e dos jogadores como soldados, numa disputa cuja ênfase não está apenas nas habilidades corporais, como ocorre com o nosso futebol, mas também na conquista e preservação de territórios em guerra como é o caso do futebol americano? Acresce a tudo isso o fato de que os Estados Unidos são uma sociedade da especialização e da divisão de trabalho que o futebol deles exprime com precisão, tendo jogadores especializados em defender e atacar, em passar e receber a bola, em correr com ela e em bloquear os adversários.
Finalmente, como gostar de um esporte que não é parlamentar? Ou seja, um esporte no qual não há uma jogada inicial para o outro time rebater, como acontece com os discursos do parlamento, e como os chutes, os saques e as bolas que dão a partida, como é o caso do futebol americano, do voleibol e do beisebol? Vale também lembrar que no futebol americano não é o time que carrega a bola em conjunto (ou associação), mas o jogo tem início com um chute inicial para o time adversário que responde correndo com a bola para o campo inimigo. Nesse esporte, os homens correm tanto quanto a bola!

Para os americanos esse é o esporte que melhor exprime sua sociedade. Daí a paixão e a seriedade com a qual o encaram. Lá, o nosso soccer é praticado por crianças e meninas. Vamos ver se essa Copa vai dar à FIFA mais do que verdes dólares. Eu, sinceramente, duvido...”

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