sexta-feira, 27 de novembro de 2015

As mulheres e a prática desportiva

"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com sua natureza..." (art. 54, Decreto-Lei 3.199/41)
O desporto sempre estará integrado ao processo evolutivo social e assim como acontece nas demais esferas, sempre esteve vulnerável desde sua origem a um forte domínio patriarcal, logo respondendo aos interesses do gênero masculino. Mesmo com a emancipação feminina marcante no séc. XX, a disparidade entre os gêneros ainda é sentida e refletida numa menor oportunidade de prática ao público feminino. Contudo, essa visão vem se alterando junto a uma sociedade em permanente mudança com a tentativa de libertação do domínio masculino e de um conceito enraizado de fragilidade extrema do organismo feminino.

A separação de gêneros ocorre de uma forma que chega a ser considerada natural, onde se observam preferências femininas (ex: volei) e masculinas (ex: futebol). O preconceito acaba por circundar todas as demais modalidades, mesmo nas três que dão base para o desenvolvimento de todos as outras, o atletismo, a natação e a ginástica olímpica.

Mesmo com a necessidade de muito força física por parte do seu praticante, a ginástica olímpica ainda é vinculada ao sexo feminino e o atletismo, em menor escala, ao masculino. O próprio Barão Pierre de Coubertin, criador do Olimpismo, na abertura dos Jogos Olímpicos modernos, chegou a incentivar "a exaltação solene e periódica do atletismo masculino, tendo por base o congraçamento entre os povos, a lealdade como meio de compreensão, a arte como cenário e o aplauso feminino como recompensa”.

Até o séc. XIX, as mulheres eram impedidas de frequentar ambientes desportivos com o receio geral de se masculinizarem tomando como consequência o desvio de seus objetivos fins de casamento e procriação. As mudanças começam a ser sentidas com a inserção de ideais europeus de autonomia e independência da mulher às normas impostas de restrição e delicadeza física. O cenário se altera ainda mais com o desenvolvimento da medicina, os ideais de uma raça sadia, através do higienismo e eugenismo, e da preocupação militar na formação corporal das mulheres e sua representação de elemento saudável de procriação.

A consolidação da inserção da mulher no cenário desportivo brasileiro se deu sobretudo após a participação da primeira sul-americana em Jogos Olímpicos, a nadadora Maria Lenk em 1932 na cidade de Los Angeles, além da criação de torneios exclusivos ao gênero, tais quais: os Jogos Femininos do Estado de São Paulo (1935), os Jogos da Primavera (1949) e os Jogos Abertos Femininos (1954-60). Nos últimos anos talvez tenha se visto uma evolução ainda maior em função do desenvolvimento científico de treinamentos específicos às peculiaridades femininas. Mas tal diferenciação ainda apresenta resquícios até mesmo em suas bases, no desporto educacional.

Na própria Educação Física curricular da rede básica de ensino ainda há resistência e polêmicas quanto à prática conjunta de atividades entre meninos e meninas. Entretanto o argumento principal de tal separação, o biologicista, é totalmente frágil, pois se embasa em superioridades físicas e motoras. O desporto educacional em sua essência é de iniciação e lúdico, principalmente nos primeiros anos de atividades. O objetivo nesse momento não é o de rendimento físico, mas de desenvolvimento motor, com a hipercompetitividade devendo ser evitada.

Aqueles que se interessarem pelo aprimoramento e desenvolvimento em determinado esporte devem encontrar tal oferta fora do ambiente educacional básico, nas universidades ou em aulas apartadas destinadas à formação desportiva e rendimento. A separação de gêneros nas aulas desconsidera a articulação do gênero com outras categorias, a existência de conflitos, exclusões e diferenças entre pessoas do mesmo sexo, além de impossibilitar qualquer forma de relação entre meninos e meninas, conforme esclarece Eustáquia de Sousa, em “Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar”.

As aulas da forma pela qual são realizadas fortalecem padrões e estereótipos de gênero. As crianças passam a assumir papéis sociais de acordo com modelos apresentados em seus cotidianos e são automaticamente estimuladas à prática de atividades pré-determinadas. Os jovens são influenciados a praticarem somente atividades consideradas atinentes a cada sexo.

O desempenho motor diferenciado é estimulado até mesmo dentro do ambiente familiar quando os meninos são incentivados a realizar brincadeiras livres e agressivas, enquanto as meninas são desencorajadas a tais condutas. Se as meninas passassem por processos de ampla vivência de movimentos, assim como acontece com os meninos, certamente a diferença de habilidade motora seria diminuída. 

Temos um exemplo claro nos Estados Unidos, onde após a obrigação das universidades reverterem a verba destinada ao desenvolvimento de prática desportiva de maneira igualitária a todos os esportes, desenvolveu-se consideravelmente o soccer/futebol feminino local, haja vista a verba destinada à esportes dominantes na cultura local como o futebol americano ser revertida à prática masculina, deixando a verba destinada ao soccer/futebol sem tanto prestígio, à prática feminina. Por muitos anos o futebol/soccer/futebol feminino norte-americano esteve no topo.

O desinteresse às aulas de Educação Física, a falta de incentivo à práticas que ensejam um maior desenvolvimento motor desde a infância e de instalações adequadas são os principais motivos pelo desinteresse feminino à prática desportiva. Percebe-se, ainda com muita frequência, ações e resquícios de uma sociedade marcada pela diferenciação e hierarquização de um gênero sobre o outro. Os papéis destacados a homens e mulheres se configuram em construções culturais de uma determinada sociedade, sendo assim, passíveis de transformação, tal como o desporto em geral. O desporto brasileiro em geral deve ser moralizado e, mais que tudo, democratizado.

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