As mulheres e a prática desportiva
"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com sua natureza..." (art. 54, Decreto-Lei 3.199/41)
O
desporto sempre
estará integrado ao processo evolutivo social e assim como acontece nas
demais
esferas, sempre esteve vulnerável desde sua origem a um forte domínio
patriarcal, logo respondendo aos interesses do gênero masculino. Mesmo
com a
emancipação feminina marcante no séc. XX, a disparidade entre os gêneros
ainda
é sentida e refletida numa menor oportunidade de prática ao público
feminino. Contudo,
essa visão vem se alterando junto a uma sociedade em permanente mudança
com a tentativa de libertação do domínio masculino e de um conceito
enraizado de fragilidade
extrema do organismo feminino.
A
separação de
gêneros ocorre de uma forma que chega a ser considerada natural, onde se
observam preferências femininas (ex: volei) e masculinas (ex: futebol). O
preconceito acaba por circundar todas as demais modalidades, mesmo nas
três que dão base para o desenvolvimento de todos as outras, o
atletismo, a natação
e a ginástica olímpica.
Mesmo com a necessidade de muito força física por parte do seu praticante, a ginástica olímpica
ainda é vinculada ao sexo feminino e o atletismo, em menor escala, ao
masculino. O próprio Barão Pierre de Coubertin, criador do Olimpismo, na abertura
dos Jogos Olímpicos modernos, chegou a incentivar "a exaltação solene e
periódica do atletismo masculino, tendo por base o congraçamento entre os
povos, a lealdade como meio de compreensão, a arte como cenário e o aplauso
feminino como recompensa”.
Até o séc. XIX, as mulheres eram impedidas de
frequentar ambientes desportivos com o receio geral de se masculinizarem tomando
como consequência o desvio de seus objetivos fins de casamento e procriação. As
mudanças começam a ser sentidas com a inserção de ideais europeus de autonomia e
independência da mulher às normas impostas de restrição e delicadeza física. O
cenário se altera ainda mais com o desenvolvimento da medicina, os ideais de
uma raça sadia, através do higienismo e eugenismo, e da preocupação militar na
formação corporal das mulheres e sua representação de elemento saudável de
procriação.
A consolidação da inserção da mulher no cenário
desportivo brasileiro se deu sobretudo após a participação da primeira
sul-americana em Jogos Olímpicos, a nadadora Maria Lenk em 1932 na cidade de
Los Angeles, além da criação de torneios exclusivos ao gênero, tais quais: os
Jogos Femininos do Estado de São Paulo (1935), os Jogos da Primavera (1949) e os Jogos Abertos Femininos (1954-60). Nos últimos anos talvez tenha se visto uma
evolução ainda maior em função do desenvolvimento científico de treinamentos
específicos às peculiaridades femininas. Mas tal diferenciação ainda apresenta
resquícios até mesmo em suas bases, no desporto educacional.
Na própria Educação Física curricular da rede básica
de ensino ainda há resistência e polêmicas quanto à prática conjunta de atividades
entre meninos e meninas. Entretanto o argumento principal de tal separação, o
biologicista, é totalmente frágil, pois se embasa em superioridades físicas e
motoras. O desporto educacional em sua essência é de iniciação e lúdico,
principalmente nos primeiros anos de atividades. O objetivo nesse momento não é
o de rendimento físico, mas de desenvolvimento motor, com a
hipercompetitividade devendo ser evitada.
Aqueles
que se interessarem pelo aprimoramento e
desenvolvimento em determinado esporte devem encontrar tal oferta fora
do
ambiente educacional básico, nas universidades ou em aulas apartadas
destinadas
à formação desportiva e rendimento. A separação de gêneros nas aulas
desconsidera a articulação do gênero com outras categorias, a existência
de
conflitos, exclusões e diferenças entre pessoas do mesmo sexo, além de
impossibilitar qualquer forma de relação entre meninos e meninas,
conforme esclarece Eustáquia de Sousa, em “Meninos e meninas:
expectativas corporais e
implicações na educação física escolar”.
As aulas da forma pela qual são realizadas
fortalecem padrões e estereótipos de gênero. As crianças passam a assumir
papéis sociais de acordo com modelos apresentados em seus cotidianos e são
automaticamente estimuladas à prática de atividades pré-determinadas. Os jovens
são influenciados a praticarem somente atividades consideradas atinentes a cada
sexo.
O desempenho motor diferenciado é estimulado até
mesmo dentro do ambiente familiar quando os meninos são incentivados a realizar
brincadeiras livres e agressivas, enquanto as meninas são desencorajadas a tais
condutas. Se as meninas passassem por processos de ampla vivência de
movimentos, assim como acontece com os meninos, certamente a diferença de
habilidade motora seria diminuída.
Temos um exemplo claro nos Estados Unidos, onde
após a obrigação das universidades reverterem a verba destinada ao
desenvolvimento de prática desportiva de maneira igualitária a todos os
esportes, desenvolveu-se consideravelmente o soccer/futebol feminino local, haja vista a verba destinada à esportes dominantes na cultura local como o futebol
americano ser revertida à prática masculina, deixando a verba destinada ao soccer/futebol sem tanto prestígio, à prática feminina.
Por muitos anos o futebol/soccer/futebol feminino norte-americano esteve no topo.
O desinteresse às aulas de Educação Física, a falta de incentivo à práticas que ensejam um maior desenvolvimento motor desde a
infância e de instalações adequadas são os principais motivos pelo
desinteresse feminino à prática desportiva. Percebe-se, ainda com muita
frequência, ações e resquícios de uma sociedade marcada pela diferenciação e
hierarquização de um gênero sobre o outro. Os papéis destacados a homens e
mulheres se configuram em construções culturais de uma determinada sociedade,
sendo assim, passíveis de transformação, tal como o desporto em geral. O
desporto brasileiro em geral deve ser moralizado e, mais que tudo,
democratizado.
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